O Brasil encaretou ou nunca esteve tão aberto ao novo?
No dia 16 de março, a TV Globo levou ao ar o primeiro capítulo de Babilônia. Considerado o mais influente produto midiático do país, a novela das nove é a maior audiência da televisão brasileira. Ou era. Naquela estreia, o espectador que assistiu ao beijo entre as personagens de Fernanda Montenegro e Nathália Timberg parece não ter gostado muito do que viu. Octogenárias, as duas atrizes incomodaram quem rotulou o carinho como uma afronta à família tradicional. Nas redes sociais, clamou-se por um boicote. Na medição do Ibope, esse boicote acabou por rebatizar Babilônia como a novela das nove de pior audiência de todos os tempos. Com média de 25 pontos na Grande São Paulo, quando o esperado seria 35 pontos, o autor Gilberto Braga resolveu se pronunciar. Em entrevista ao jornal O Globo, admitiu se sentir humilhado por perder para I love Paraisópolis, no ar às 19h. E cravou: "O Brasil está mais careta, não tenho a menor dúvida".
Com uma lupa, o pesquisador de cultura pop Thiago Soares enxerga ousadia no que muitos viram afronta. Professor na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ele aponta dois avanços no debate em torno da representação homossexual: a visibilidade lésbica e a faixa etária desse casal. "A lésbica tem um lugar de invisibilidade na cultura gay, então estar no horário nobre já é um avanço. Mais ainda, por se tratar de um casal de idosas", acredita. "A presença de lésbicas jovens e lindas sempre me pareceu um atendimento ao olhar masculino. Nesse caso, essa presença é diferente. E isso incomodou". Incomodou tanto que os autores precisaram recuar nesse e em outros aspectos, como a sexualidade aguçada da personagem de Glória Pires. "Assim como a política, a mídia está em constante negociação. Faz parte do jogo avançar em determinadas discussões, mesmo que seja preciso recuar mais adiante".
Por conta do alarde em torno do tal beijo, liberais bradaram em favor da liberdade de ser quem se é. E acusaram o Brasil de ter encaretado. O sociólogo Nadilson Farias discorda. "O que existe é um movimento de reação conservadora a um movimento de reivindicação de direitos às minorias. Se há uma resistência maior, é porque o país vive uma abertura maior". Em relação ao boicote, o professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) acredita que a rejeição tem a ver com uma narrativa que coloca a vilania em posição de protagonismo. "A novela exibe um mundo cão. E o público tende a rejeitar esse universo. Um vilão, por exemplo, só funciona em oposição a um herói. É esse embate que vai gerar uma discussão em torno de valores". Thiago, por sua vez, sabe que flexibilizar esses valores leva tempo. "O terreno do espectador de telenovela é o mais conservador da televisão. Nosso olhar acompanha há cinco décadas personagens heterossexuais casando em igrejas católicas. Desconstruir esse olhar não vai ser da noite pra o dia".
Toda forma de amor
A publicidade também teria culpa no cartório. Durante décadas, vem reproduzindo os mesmos comportamentos. Quando ensaia largar a cartilha, se vê em um fogo cruzado. É o caso da campanha de dia dos namorados do Boticário. Oitava maior empresa varejista do país, a marca foi duramente criticada por incluir dois casais homossexuais em uma propaganda televisiva. A peça dura 30 segundos – o suficiente para o pastor Silas Malafaia classificá-la como "uma tentativa de querer ensinar crianças e jovens o homossexualismo". A publicitária Izabela Domingues dá de ombros. Diretora da Consumix, uma consultoria de comunicação e consumo para agências e anunciantes, defende que a publicidade precisa abraçar discursos múltiplos. "Há um movimento crescente no país de questionamento da heteronormatividade. O Boticário está buscando atender a esse público, ao mesmo tempo em que se coloca como uma marca atual".
Também coordenadora do curso de publicidade das Faculdades Integradas Barros Melo (Aeso), Izabela atenta para a importância das redes sociais nesse debate. "O Brasil não encaretou, o Brasil sempre foi careta. Como a internet é um palco de grande visibilidade, a caretice ganhou contorno de novidade. E com o incômodo dos conservadores exposto na rede, vem a impressão de uma regressão de conduta". Recentemente, o teórico italiano Umberto Eco, referência nos estudos de comunicação, foi de encontro a Facebook, Twitter, Instagram e cia. "As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis", resmungou. Para a publicitária, o frasismo está equivocado. Um dos pontos positivos da internet seria justamente a democratização da circulação de informações díspares, e não só daquelas interessadas na manutenção do status quo. Como parece ser a intenção do autor do clássico Apocalípticos e integrados, publicado em 1964.
Embora a internet seja essa espécie de alto-falante universal, Roger de Renor questiona se há lugar de fala na mídia tradicional. Ator, apresentador e produtor cultural, ele acredita que a sociedade está cada vez menos careta, mas tem cada vez menos espaço para se posicionar. "Estamos avançando nas nossas conquistas, mas a maioria dos canais de TV e rádio é controlada seja por políticos, seja por evangélicos. E a voz deles não é a voz do Brasil". As críticas à ascensão da bancada evangélica são tão superlativas quanto a presença desses políticos tanto na Assembleia Legislativa de Pernambuco como no Congresso Nacional. Em Brasília, por exemplo, se fosse um partido, a bancada seria o terceiro mais populoso na casa bicameral, atrás apenas do Partido do Movimento Democrático do Brasil (PMDB) e do Partido dos Trabalhadores (PT). Inquieto, Roger vai improvisando soluções. "A gente não tem TV nem rádio, mas tem as ruas".
Cada um na sua bolha
"Se defender os bons costumes é ser conservador, então eu sou conservador", assegura Bispo Ossésio Silva (PRB). Membro da bancada evangélica em Pernambuco, o deputado estadual desconversa ao comentar os exemplos recentes que tiveram expressiva repercussão. "Não acompanho muito televisão". Limita-se a dizer que é favor da democracia. "Mas estou do lado da família brasileira". Colega de bancada, André Ferreira (PMDB) prefere soltar o verbo. "A situação está tão imoral que tivemos que nos posicionar. A consequência é sermos tachados de caretas". Para o parlamentar, a mídia é a culpada por incentivar uma suposta inversão de valores. "O que antes era errado passou a ser considerado certo. As novelas mostram os casais homossexuais como a coisa mais linda do mundo. Por conta disso, muitas crianças e adolescentes estão indo por esse caminho. Como pai de duas filhas de sete e nove anos, preciso dar meu grito".
Em 2013, Hilton Lacerda lançou Tatuagem, um filme que parece interessado em falar sobre as coisas lindas desse mundo. O diretor e roteirista retrata o Recife dos anos 1970 por meio do romance entre um artista e um militar, interpretados por Irandhir Santos e Jesuíta Barbosa, respectivamente. "Esse casal não foi criado pra ser uma provocação e, sim, um elemento dentro de uma narrativa. Mas não sou ingênuo de achar que todo o público o enxergue como eu". Hilton reflete, inclusive, sobre seu próprio olhar. "Às vezes, me sinto dentro de uma bolha. Como convivo com gente parecida comigo, me sinto protegido do que tem de assustador por aí". Apesar de Tatuagem contar a história da maneira que lhe convém, o cineasta percebe um retraimento na produção contemporânea. "Quando José Wilker morreu, o Jornal Nacional exibiu uma cena em que ele aparece nu em Dona Flor e seus dos maridos. Mas exibiu com uma tarja preta. Até Jorge Amado estão censurando. O que é isso?".
A insatisfação de Hilton, no entanto, não está em discutir a polarização de visões de mundo. Mas no fato de ser o mercado, e não o estado, o responsável por levantar a questão. A réplica do filósofo, escritor e ensaísta Luiz Felipe Pondé vem a calhar: "Os marqueteiros são os verdadeiros profetas". Em outras palavras, quem está por trás da engenhoca midiática é quem vai reger o futuro desse debate. "Se beijo entre pessoas do mesmo sexo estiver dando audiência às novelas, o beijo continua. Se o Boticário começar a vender menos depois de incluir casais homossexuais nas propagandas, os casais saem. Quem fala mais alto é a grana". Como marqueteiro que não é, Pondé se abstém de fazer profecias. Mas também não se ilude. "A tensão entre o que a gente espera que o mundo seja e o que ele de fato pode dar pra gente existe desde a pré-história... E não vai ser resolvida".